Antônio PARREIRAS 1860-1937

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Paisagem sempre 1932-1937 Retornar

Certamente não é por acaso que as palavras do admirável poeta e intelectual anglo-americano T. S. Eliot (1888-1965) também podem ser aplicadas com propriedade aos pintores:

(...) é nossa tendência insistir, quando louvamos um poeta, naqueles aspectos de seu trabalho em que ele menos se assemelha com outro. (...) Mas se nos aproximamos de um poeta sem este preconceito, muitas vezes descobrimos que não só as melhores partes, mas os elementos mais individuais de seu trabalho podem ser aqueles em que os poetas mortos, seus ancestrais, exercem com mais vigor sua imortalidade. E não falo do período influenciável da adolescência, mas o de plena maturidade”.

Esta citação pode ser bastante elucidativa na análise da pintura de um país como o Brasil na passagem do século XIX para o XX. É comum que leigos ou até mesmo críticos de arte comentem obras de mestres brasileiros sob perspectivas que me parecem injustas e equivocadas. Como exemplo, um vício recorrente é comparar suas produções às dos mestres europeus, destacando em suas obras supostas semelhanças temporalmente obsoletas no que concerne à evolução da pintura mundial. Tal tipo de comparação é inócua, falhando em seu intuito de cotejar a produção artística do Novo com a do Velho Mundo.

Aguaçal 1936

O que me parece correto – e fascinante, como sugere Eliot – é estudar as semelhanças e influências de pintores estrangeiros sobre os nossos, não como subserviente imitação tardia em inevitável defasagem criativa, mas sobretudo como ato de afirmação singular quando eles estabelecem suas decisivas marcas pessoais, imersos em seu próprio meio-ambiente natural e social específico. Decerto será sempre mais pertinente questionar como nossos artistas assimilaram a vivência européia, refundindo-a à dos seus predecessores nacionais, assim como estes, por sua vez, estiveram também sujeitos a processo análogo de individualização.

É importante recordar que até o início do século XX, os pintores brasileiros não dispunham de tão fácil acesso às vanguardas de Paris ou Viena, e as reproduções de obras de arte a que tiveram acesso eram de ínfima qualidade técnica. Viajaram ao exterior, quase todos, como bolsistas premiados pela Academia Imperial e pela Escola Nacional de Belas Artes para estudar com reconhecidos mestres das célebres academias européias – artistas cujo prestígio sustentava os padrões da criação artística vigente e eram por princípio infensos às inovações estéticas.

Antônio Parreiras foi uma notável exceção neste particular, pois desde 1887 e ao longo do meio século subseqüente empenhou-se corajosamente em preservar independência e liberdade na luta por todas as conquistas alcançadas em sua carreira. Disso decorre que o dístico aplicado na alvenaria sobre a porta de entrada de seu antigo ateliê, neste museu, está impregnado de verdade pessoal e histórica: Trabalhar é Viver.

Apresentar agora em exposição permanente uma pequena parcela da vasta produção do mestre, selecionada com critério e estudada sob diferentes ângulos de análise, é ao mesmo tempo motivo de orgulho e prazer para o Museu Antônio Parreiras. Revendo e repensando estes segmentos de criação que abrangem o período de 1909 a 1937, pretende-se oferecer aos visitantes a oportunidade de conhecerem com maior familiaridade alguns aspectos fundamentais da pintura de um artista que ambicionou e conseguiu ser tão grandioso e original quanto seu próprio país.

Tarde 1936

Essencialmente um pintor de paisagens, reinventou sua maneira de interpretar a natureza diversas vezes ao longo da vida, formando em sua obra conjuntos bem demarcados e progressivamente modernos. As paisagens da década de 1930 – derradeira em sua longa vida – são as mais vigorosas de sua produção e sem dúvida sobressaem entre as mais notáveis na história da pintura brasileira. O artista viajou para a Europa em 1888 sem apoio oficial direto e por conseguinte sem compromissos ou obrigações com quem quer que fosse. Sua iniciativa correspondeu à determinação e ao apreço pela liberdade que desde sempre definiram sua personalidade, a mesma que antes o fizera recusar as formalidades do ensino acadêmico e lançar-se à breve e genial aventura do Grupo Grimm.

Mesmo muito tempo depois de sua impetuosa juventude, decompôs e recriou a noção de interior de floresta naquilo que podemos informalmente denominar como retratos de árvores. Última floresta e Árvore morta são perfeitos exemplos disso: nelas as árvores-protagonistas adquirem a proeminência de pessoas retratadas, e seus troncos, galhos e raízes são tão singulares que parecem conferir-lhes autêntica anatomia. Perto do mar é uma espécie de híbrido entre o retrato de árvore e o tipo de paisagem mais característico na produção do artista. A copa rasteira é agora o foco da composição, destacando-se no último plano uma abertura na mata. Em obras como Aguaçal, Açude e Regueiro, Parreiras representa a farta vegetação brasileira em todas as cores dos dias resplandecentes – uma explosão de luminosidade que livremente confere forma e significado emocional à paisagem.

Um artista que ambicionou e conseguiu ser tão grandioso e original quanto seu próprio país.

Amanhecer no litoral revela a luz prateada do mormaço, com cores brandas e mar calmo compondo o efeito da manhã serena. Na tela transparece a região azul do céu, apresentando sutil contraste com nuvens diáfanas e escassas, enquanto na superfície da água, em primeiro plano, os reflexos são elaborados em esfregaço, com o pincel quase seco raspando ligeiramente a tela. Em Sudoeste à beira-mar e Tempo sombrio contemplamos a atmosfera oposta, movimentada, com tons brunos e fatura densa. O empastamento é intenso, recorrendo ao volume das tintas e ao enérgico trabalho do pincel, servindo como admirável componente expressivo na representação das ondas, das árvores curvadas pelo vento e das nuvens esquivas.

Crepúsculo e Antes da chuva são também exemplos interessantíssimos para analisar a representação de diferentes condições atmosféricas em pintura – assuntos especialmente relevantes em razão dos efeitos subjetivos que determinados climas impõem sobre diferentes indivíduos. Observe-se a ousadia formal de praticamente ignorar o primeiro plano de ambas as obras, apenas preenchendo-os com extrema simplicidade.

Em uma dentre as raríssimas vezes em que isso aconteceu, o artista se retratou em Pintando do natural. Evocando reminiscências persistentes, em obra plena de suave e amorosa nostalgia, ele aparece não apenas como pintor mas também como homem íntimo do meio-ambiente natural. As cores da floresta não são como aquelas um tanto mais realistas das demais telas nesta sala, agora prevalecendo os tons de uma paleta onírica, revestidos pela terna velatura da juventude. Antônio Parreiras lidera um seletíssimo grupo de artistas brasileiros que jamais conheceu a decadência – muito pelo contrário, aprimorou sem cessar sua expressão até as derradeiras paisagens.

SYLVIO FRAGA NETO

Texto originalmente publicado no catálogo digital da exposição Antônio Parreiras no século XX, Museu Antônio Parreiras, Niterói RJ, dezembro de 2008-março de 2010, p.51-53. Copyright © 2008-2013. Todos os direitos reservados.

Imagens de obras de arte

Antônio Parreiras - Aguaçal, 1936
óleo sobre tela 67 x 90 cm
assinada e datada no canto inferior direito; assinada, datada e titulada em etiqueta no chassis
Coleção Museu Antônio Parreiras, Niterói RJ (fotografia de Vicente de Mello)

Antônio Parreiras - Tarde, 1937
óleo sobre tela 60 x 90 cm
assinada e datada no canto inferior direito
Coleção Museu Antônio Parreiras, Niterói RJ (fotografia de Vicente de Mello)